O edifício ideológico, político e histórico
do colonialismo

Angola, os anos dourados<br> do colonialismo - A Insurreição <br>de Mário Moutinho de Pádua

Domingos Lobo

A primeira vez que tomei conhecimento com o termo contrato, ir no contrato, foi ao ler a peça Canto do Papão Lusitano, de Peter Weiss. Foi, igualmente, o meu primeiro conhecimento da questão colonial. A leitura do texto de Peter Weiss contribuiria, de forma determinante, para a minha posição crítica e distanciadora face à propaganda do regime quanto à nossa postura administrativa nas províncias do ultramar e a ausência de racismo nas relações entre europeus e africanos.

Segundo Rui de Azevedo Teixeira, no livro A Guerra Colonial e o Romance Português, a insurreição armada nas colónias ficou a dever-se à ditadura, estando esta assente na tripeça nacionalismo-colonialismo-estatismo, gerando um grau de opressão que aumentava do centro para a periferia, da metrópole para as colónias. Nestas, à natureza fascista e à repressão burocrática junta-se a prática colonial, a violência directa e sem restrições.

É este tipo de violência, mesmo quando não atinge fisicamente a vítima, mas que perfura o âmago da dignidade, que o poeta angolano Alexandre Dáskalos (poeta que morreu em 1961, no Caramulo, com 37 anos de idade), denuncia nos limites da mágoa e da revolta: Minhas mãos são de trabalho/Em coisas que eu não sei/E não tenho nem apalpo/Trabalho que fica feito/para o branco me dizer/”Obra de preto sem jeito”. Ou, de forma mais amarga e contundente, trespassado de ironia com lágrimas, no famoso poema de António Jacinto, Castigo Para o Combóio Malandro: (...) aquele vagão de grades tem bois/múu múu múu (...) tem outro/igual como este dos bois/leva gente (...) muita gente como eu/cheia de poeira/gente triste como os bois/gente que vai no contrato. Foi, através deste poema de António Jacinto, que os alvores primaveris do marcelismo (numa de integração cultural tão de papelão como a Primavera anunciada) deixaram que Rui Mingas cantasse, que pela segunda vez tomei contacto com a expressão ir no contrato.

Estas e outras denúncias da violência colonial, e o seu conhecimento directo, embora à época, nas zonas urbanas, atenuada, polida de arestas mais agressivas, com modos menos repressivos, estão presentes neste livro sagaz e densamente povoado (de gentes, de ideias, de conhecimentos) de Mário Moutinho de Pádua. Livro que de forma lapidar nos mostra o lado pouco civilizado (para ser benevolente) da nossa colonização exemplar, contrapondo os factos à propaganda do regime, a qual se esforçava por demonstrar que a brandura dos nossos costumes consubstanciava uma ausência total de conflitos rácicos e que a harmonia entre brancos e pretos era uma constante, imagem de marca do humanismo português. A segregação rácica era ao lado, a Sul, coisa de pragmáticos e austeros anglo-saxões, hereges calvinistas, práticas com as quais a nossa decantada interculturalidade nada tinha a ver - solicitávamos apenas a sua ajuda militar, o seu sofisticado arsenal bélico, para matar pretinhos, turras lhes chamávamos para descanso das nossas católicas alminhas, mas isso são contos largos que este livro desenvolve e clarifica.

A nossa missão civilizadora em África e o modo como os negros das colónias sentiam essa dádiva civilizacional, está ficcionada de forma pedagógica e exemplar neste romance histórico, misto de ficção e ensaio, de Mário Moutinho de Pádua: Angola – Os Anos Dourados do Colonialismo – A Insurreição.

Partindo de dados factuais, de personagens criadas/recriadas a partir da realidade vivida no espaço particular, e mítico, de Angola do tempo colonial (dos anos 1940 até à independência), fazendo-o a partir da crónica de uma família portuguesa, da classe média culta, que aí se instala, o autor descreve com minúcia, ora como um historiador rigoroso, ora como um antropólogo atento e fascinado pelas idiossincrasias das gentes, da língua e da cultura desse espaço imenso e diverso; como intelectual que reflecte sobre a realidade que percepciona e tomando partido, empenhado, dialéctico, crítico, sempre do lado justo da História, sobre a complexidade política que foi o processo de resistência, primeiro, face ao poder colonial, depois, e a partir do 25 de Abril de 1974, perante os vários interesses estrangeiros que pretendiam apossar-se das riquezas desse território.

O jovem António, que se confunde com o narrador, embora neste processo de contar exista entre ambos uma cúmplice distanciação, sendo personagem omnisciente, espécie de alter-ego do autor, percorre as diversas componentes discursivas, que se dividem em «livros» e não capítulos como é usual, deste originalíssimo texto. Mas não apenas o olhar de António perpassa pelas páginas deste romance (chamemo-lhe assim), outras vozes se juntam numa plural forma de estabelecer as diversas componentes que no terreno dos confrontos – culturais, sensoriais e históricos – se estabelecem ao longo deste percurso por mais de meio século de História comum Portugal/Angola, e das sinuosidades trágicas, para ambos os povos, que esse percurso significou, sobretudo a partir de 1961, com o início da rebelião e até à independência.

Através do olhar do jovem António, do pai, advogado num banco, que faz uma ascensão vertiginosa na pirâmide social, estabelecendo-se no Lobito e, mais tarde, em Luanda e, posteriormente, dos «criados da casa», chegando o filho de um deles, Miguel, a ter nesta narrativa voz autónoma e singular como quadro do MPLA, outras vozes se acrescentam, nomeadamente as dos colegas do curso de medicina, que António vem frequentar na metrópole, que viriam a ser, alguns deles, quadros superiores da resistência e do MPLA. Em Lisboa, e através do convívio que estabelece na Casa dos Estudantes do Império com outros estudantes angolanos, António toma contacto com o embrião da revolta, As Raízes da Guerra, lhe chama o autor no «Primeiro Livro», e participa activamente na construção do edifício ideológico, político e histórico (sob a sombra tutelar de Agostinho Neto) que levaria à revolta armada contra o império colonial português.

É através deste conjunto de vozes, plural e ecléctico tanto nas suas origens sociais como na diversidade de abordagens que estas vozes expressam e permitem face à complexidade do processo político, e do conflito armado que se lhe seguiu, que o autor vai traçar metodicamente escrevendo a crónica dos anos de brasa vividos na maior e mais rica das colónias do Império, não recuando perante as análises mais incómodas, a serem entendidas como politicamente inconvenientes, sobretudo no Livro Quinto, Do 25 de Abril à Independência, no qual Mário Pádua denuncia os conluios, as manobras, as alianças e os apoios que no processo tiveram as Potências Ocidentais.

Este livro, ao mesmo tempo que exorciza os fantasmas, constrói uma escrita de coragem, e de amplo sentido social, ao assumir os factos e as feridas que lhe estão no cerne. Transforma o sujeito em motor da História, agente privilegiado de uma determinada realidade e da sua transposição ficcional, fazendo-o de forma crítica, levando o leitor a reflectir sobre um tempo histórico comum aos dois povos. Há neste livro, nas suas componentes universalistas, a vertente humanista (no sentido heideggeriano e marxista) que é, na sua proposição, traço determinante de compromisso com a História, com os seus protagonistas e com a realidade que descreve.

 



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